sexta-feira, maio 23, 2008

Proibidão na internet


Quem nunca ouviu funks proibidos - os populares "proibidões" - sequer deveria se meter a comentar a situação do crime organizado no Rio de Janeiro. Neste subgênero casca grossa da cultura marginal (e não estamos falando daquela marginalidade romântica endossada pelos poetas, cineastas, músicos e performers dos anos 60 e 70) há muito material para interessados que desejem ir além do que dizem os jornais. Aos desinformados, um toque solidário: melhor que simplesmente ouvir as músicas é pesquisar o gênero no Youtube (sem medo de nada, isto é, falo por mim, quem não deve, não teme). Há dezenas de videozinhos escabrosos onde podem ser vistas cenas de guerras com a polícia, fotos de armamento pesado, "irmãos" do crime, celulares caros, cordões de ouro ou de prata, enfim, tudo o que simboliza e glorifica a vida curta e grossa da galera engajada nas facções fluminenses.
Basta buscar "funk proibidão" + CV, ADA, TC ou TCP para encontrar exemplos cabais da retórica que rege a coreografia social de uma juventude kamikaze e muito orgulhosa de si mesma. Mas, acima de tudo, o funk proibidão oferece sem meias palavras o relato in loco das inúmeras histórias e personagens que compõem o universo das facções e de seus membros: descrições detalhadas de operações, assassinatos, roubos e procedimentos comuns entre os soldados do tráfico, como o já conhecido "microondas" (popularizado desde a morte do jornalista Tim Lopes e espetacularizado pelo filme Tropa de Elite - na cena em que o playboyzinho passador de bagulho da PUC é assassinado pelo malfeitor Baiano), e o tradicional "arrego" pago aos policiais corruptos - policiais estes que estão longe de serem os únicos a se beneficiarem do comércio ilegal de drogas nas favelas do Rio de Janeiro.
Abaixo, seguem alguns links de proibidões. Mais do que estômago forte ou consciência ética, é preciso abrir os olhos e os ouvidos para o que têm a dizer nossos imberbes meliantes sobre a realidade canina em que vivem, matam e morrem todos os dias - enquanto a classe média reclama assustada da violência, condena a CPMF e rebola o rabo em suas festinhas e churrascos ao som do MC Créu.

Vai com Deus!

http://www.youtube.com/watch?v=IPEJJT9uWZQ
http://www.youtube.com/watch?v=5M5dqM2iCuw&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=YSpLGq-tgqo&feature=related

quarta-feira, maio 21, 2008

Cine-Olho? Música da Luz? Cinemancia? (Brakhage & Cia.)


Que nome dar, afinal, para o delírio ótico-espectral de um filme como Dog Star Man, de Stan Brachage, ou para os exercícios vídeo-coregráficos de Maya Deren, bem como para tantos outros nomes do chamado cinema underground ou experimental? Para além de rótulos tão consagrados quanto insuficientes, vemos um mar de fotogramas chamuscando a imaginação do espectador, obrigado a vencer o vício da narrativa romanesca tradicional caso queira aventurar-se por tais plagas.
Não, não se trata de "coisa de intelectual". É tão fácil quanto ridículo descartar a arte experimental sob a alegação de "chatice" ou "intelectualismo". O que está em jogo é: como julgar um filme que consegue ser mais real e fantástico que o pior dos pesadelos, sem necessariamente assustar com suas imagens? O que posso aprender e guardar desses retalhos de películas e seqüências programadas para alterar inapelavelmente nossa percepção usual da cor, da matéria e do movimento?
"A beleza será convulsiva ou não será", disse o velho Breton, ecoando Rimbaud e preparando terreno para a explosão da experiência fílmica. Quer entender melhor? Vá em www.brakhage.com/film_dvd.htm.
E tomem cuidado com o vira-lata espacial...

quarta-feira, maio 14, 2008

Ava X A voz


Há dez anos eu liguei a televisão e Sinatra estava morto. Passaram um vídeo de "My Way", é claro. Eu fui dormir chateado, pensando que um sujeito como Frank não nasce todo dia. Além de cantar, o cara sobreviveu a um pé na bunda de Ava Gardner!

Reza a lenda que, ao saber do romance de seu ex-amante com Mia Farrow, Dona Ava não se conteve e disparou:

- Eu sempre soube que ele queria mesmo era um garotinho.

Ava devia ser pior que a Eva da Bíblia e a Eve do filme juntas. Já o velho Frank era capaz de esmurrar um idiota que ousasse conversar durante um concerto de Billie Holiday (sua maior influência declarada). Nada disso faz diferença para quem ouve uma canção como 'Hello Young Lovers" pela primeira vez, mesmo que num cedezinho fuleiro, comprado numa liquidação da extinta Gabriela Discos. E é por essas e muitas outras que o apelido do homem ficou sendo "a Voz".

Como não encontrei um vídeo decente, deixo aqui a letra de "Hello Young Lovers". É o cúmulo da dor de corno: não obstante estar sozinho, o narrador da canção se dirige aos casais jovens e felizes, como quem diz: "é, já passei por isso, mas depois tudo desaba". Puro pretexto para lamentar-se: o homem é um chato romântico e depressivo. Mas quem agiria diferente, após um fora de Ava Gardner?

Hello young lovers who ever you are
I hope your troubles are few
All my good wishes go with you tonight

I've been in love like you
B
e brave young lovers and follow your star
Be brave and faithful and true

Cling very close to each other tonight

I've been in love like you
I know how it feels to have wings on your heels

And fly down the street in a trance
You fly down a street on a chance that you'll meet

And you meet not really by chance

Don't cry young lovers what ever you do

Don't cry because I'm alone

All of my memories are happy tonight

I've had a love of my own
I've had a love of my own like yours
I've had a love of my own

domingo, maio 11, 2008

Sobre pessoas que vão e ficam


Por mais que eu procure explicar e justificar a persistência de certas pessoas em minha memória, sempre me deparo com o absurdo inaceitável de tentar representá-las em relação ao que sinto ou senti por elas. Em nome do apego, da imaturidade emocional ou do mero medo de perdê-las, alimentei o péssimo hábito de caracterizá-las a partir da impressão que me causaram desde o instante em que as conheci até o momento em que, intencionalmente ou por acaso, sumiram do mapa sem deixar pistas.
Minha má formação encontra aqui sua faceta incômoda e desastrosa. Nunca lidei bem com a rejeição, a perda e suas variantes; na maioria dos casos, sinto-me o único responsável por tudo - o que logicamente não corresponde à verdade. Mas quem quer saber da verdade, quando percebe que não há argumentos válidos num diálogo que se torna monólogo? Delírios autodestrutivos vão sendo moldados pelas garras do ressentimento e da melancolia; pensamentos e atos falhos alimentam uma dor austera que se desdobra em fúria, apatia, revolta ou resignação. A voz da consciência conclui, implacável:
"Que papelão, Pataca! Até quando você vai continuar se comportando como um Hamlet do subúrbio?"
A senhora está certa. A senhora está sempre certa. I beg your pardon, milady. Agora, com sua licença, vê se arruma o que fazer e me deixa quieto, remoendo meus fantasmas domésticos, sob o olhar voluptuoso da caveira de meu pai.

quinta-feira, maio 01, 2008

Ao trabalho, tarde de maio


Feriado bonito, o primeiro de maio... Justamente agora, no meio da tarde cinzenta, cumpro meu único ritual particular - recitar o poema mais belo da língua, sozinho, diante do espelho:

TARDE DE MAIO
Carlos Drummond

Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de |seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma,
disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

Sobre meu caráter duvidoso

Sendo sincero, na medida do possível, devo confessar que meu caráter não é nada exemplar (moralmente falando), embora caiba a mim, mais do que a ninguém, defendê-lo de julgamentos infundados. Por exemplo, ignoro o que signifique "respeito à intimidade alheia" - em especial quando se trata da privacidade de alguém próximo. Namoradas, amigos, professores, parentes - o desejo incontrolável de dissecar suas vidas supera o óbvio dever de não fazê-lo em circunstâncias duvidosas...
Foi ao atravessar o inferno da pré-adolescência que descobri o prazer de surpreender a hipocrisia dos entes queridos por meio de expedientes condenáveis.
Numa gaveta do armário de meu avô, encontrei uma pilha de material pornográfico tão imundo que quase me arrependi da descoberta. Na videoteca do pai de uma grande amiga, achei fitas recheadas de closes escabrosos de sexo anal (homo e hetero). Minha primeira mulher permitiu que eu descobrisse uma dolorosa seqüência de mails entre ela e um ex-namorado insistente (e muito bem correspondido em suas investidas). E nada supera o dia em que aproveitei uma saída rápida de minha analista para ler suas notas sobre um amigo meu, onde a descuidada terapeuta comentava a paixão mal-resolvida do citado pelo autor destas linhas...
Sim, confesso que tenho me excedido. Mas o que dizer das pessoas cujas vidas pude desmascarar secretamente? Nunca me utilizei de tais fatos para humilhar ou chantagear ninguém: em verdade, tudo o que eu lucrei com isso foi ter certeza de que não presto, como todos eles, e provavelmente todos vocês.